A longa duração do racismo

Ana Helena Passos1



                        

Há palavras-conceitos ainda vivas em circulação, que definem o nosso brumoso atraso e, em seu fedor, viscosas, mancham-nos como escarros. Tais são: escravidão, putas, injustas, chicote, assassinos e rancos, analfabetos, ódio, mendigo, racismo, fome, guerra e outras..... Seu uso dolorosamente se documenta a todos os momentos, por exemplo, nos jornais. Encerra cada uma o peso nebuloso de uma coacção que alimenta muita rilhada frustração e muita injustiça vivida na exploração e solidão, contradição e amargura...

António Cardoso2



Resumo:



O artigo parte da idéia levantada por autores como Benjamin Isaac em seu livro intitulado “A invenção do Racismo na Antiguidade Clássica” de que já havia, mesmo antes da construção do conceito de racismo no século XIX, um sentido negativo ou depreciativo no tratamento e na construção da imagem e da identidade dos negros na sociedade desde o mundo grego e romano. Temos como objetivo dessa discussão trazer um breve histórico do conceito/ideologia do Racismo e suas diversas construções nas sociedades - principalmente na brasileira -, e como esse processo interfere na construção de uma identidade afrodescendente. Iremos mostrar que esse conceito/ideologia pode ser analisado a luz da percepção de “longa-duração”, calcada no conceito do historiador Fernand Braudel, e ademais, refletirmos sobre qual o papel das Universidades, como instituições legitimadoras dos discursos de transformações sociais, nesse trabalho de construção das identidade(s) negras(s) no Brasil.

Palavras-chave: racismo, longa duração, identidade, afrodescedência.


Abstract:


The Article proposes the idea raised by authors like Benjamin Isaac in his book entitlled: “The invention of Racism in the Ancient Classic”, which had, even before the construction of the concept of racism in the XIX century, a negative or derogatory sense in the treatment and construction of the image and the identity of the negro since the Greek na Roman World. We have as na objective of this discussion, bring a brief historic of the concept/ideology of Racisn and its diverse constructions in the societies-mainly in the Brazilian – and how this process interferes in the construction of na afrodescent identity. We shall demonstrate that this concept/ideology can be analysed at the light of perception of “long duration”, base don the concept of historian Fernand Braudel, and besides, reflect upon which is the role of Unversities, as legitimating institutions of the discourses of social transformations, in this work of construction of the negro identity(ies) in Brazil.

Key words: Racism, “long duration”, Identity and Afrodescendence.


        Ao nos depararmos com a resenha escrita pelo professor Craige Champion3 sobre o livro “The Invention of Racism in Classical Antiquit”, escrito por Issac Benjamin, podemos perceber duas grandes novidades: uma nova percepção sobre os elementos fundadores do conceito de racismo moderno do séc. XIX e a idéia de um “proto racismo”4 que nos faz crer que a longivitude das noções de uma atitude depreciativa com relação as pessoas de pele negra ou ao que lhe é estranho é bem mais antiga do que imaginávamos. Champion nos mostra que, mesmo trazendo a idéia de um “proto racismo”, o trabalho do escritor e professor Isaac Benjamin não está livre de contestação e críticas tanto ao seu tratamento no que se refere às idéias e filosofias políticas e socais dos impérios grego e romano quanto à sua abordagem com relação ao racismo, que fica presa a um conceito de racismo vinculada a idéia de um determinismo ambiental.

        Para Benjamin o conceito de racismo era “uma atitude em relação a indivíduos e grupos de pessoas, a qual pressupõe uma conexão direta e linear entre as qualidades físicas e mentais. O que, por conseguinte atribui a estes indivíduos e grupos de pessoas, traços coletivos físicos, mentais e morais, os quais são constantes e inalteráveis pela vontade humana, pois são causados por fatores hereditários ou influências externas, como clima ou a geografia”.Esse conceito está vinculado à idéia de um determinismo ambiental que foi muito bem recebido por alguns autores e criticado por outros, o que veremos mais adiante.

        Benjamin inova e engrandece o discurso da existência de atitudes que levavam a ações preconceituosas na época dos impérios. E, essas atitudes começam a formar as noções de racismo, séculos depois. Um livro “meticulosamente pesquisado, impressivo por seu escopo, claramente apresentado e provocativamente estimulante na sua argumentação”. É assim que o define Craige Champion na sua resenha. Mesmo usando discrições e conceitos de um racismo que só foi efetivado como conceito no séc. XIX, Benjamim levanta a hipótese de que nos tempos dos Impérios já se tinha precedentes para a formação do racismo moderno.

        Tudo isso nos leva a crer que a história dos homens é construída através de suas experiências e vivências, durante um determinado tempo. É assim que nos lembra Lucien Febvre, “história ciência do passado, ciência do presente”.

        Mesmo não tendo a certeza da existência de ações que poderiam ser constadas como discriminatórias ou depreciativas com relação ao “outro”, existe relatos e escritos de viajantes que contam experiências de atitudes preconceituosas e discriminatórias para com aqueles de pele escura5 . A exemplo disso podemos verificar as diferenças entre o tratamento dos escravos brancos e negros no séc. IX, na Arábia, como nos relata Lewis em seu livro citado. Mesmo estando as duas raças vivendo em regime de escravidão, as regras para os escravos brancos eram mais amenas do que as dos escravos negros. O autor traz uma reflexão sobre a existência de um “proto racismo” e sobre a idéia de uma pureza de sangue. Essa pureza de sangue, que se encontrava baseadas nos ensinamentos religiosos - daí o início da naturalização do sistema escravista -, deu início à perseguição dos judeus e também era considerada uma forma de racismo.

        Com isso, entendemos que mesmo sem algumas precisões científicas acerca de datas ou épocas, poderíamos pautar a existência de atos preconceituosos ou, como nos relata Benjamin um “proto-racismo”. O fato é que essas atitudes permeiam as sociedades desde, no mínimo, o século IX, com a colonização árabe, e constrói desde então idéias e noções de uma naturalização do sistema escravista que servirá como uma das bases da construção do conceito/ideologia racista do século XIX.

        Não poderíamos deixar de pensar o racismo como um conceito tanto como uma ideologia. Entendemos o racismo como um conceito quando este está apenas querendo trazer a idéia de um estudo sobre as raças. O conceito de raça foi usado para classificar os diversos tipos de raças existentes, desde o mundo animal até o mundo humano. Já quando nos referimos ao um racismo como ideologia estamos nos pautando na idéia de que o racismo se tornou uma doutrina que induz e legitima os atos e ações preconceituosas e discriminatórias das pessoas.6

        Assim sendo, podemos perceber que a discussão acerca do racismo gira em torno da duração social de uma ideologia. “essa duração social, esses tempos múltiplos e contraditórios da vida dos homens, que não são apenas a substância do passado, mas também o estofo da vida social atual” (Braudel, 1969, p. 43). Portanto, a discussão da ideologia do racismo e algumas de suas conseqüências podem ser analisadas à luz de uma dialética da duração. “Que se trate do passado ou da atualidade, como consciência clara dessa pluralidade do tempo social é indispensável a uma metodologia comum das ciências sociais” (Braudel, 1969, p. 43). Como veremos adiante, o racismo, para além de uma ideologia construída através da hierarquização dos homens e de suas culturas, poderá também ser enquadrado nos estudos sobre estrutura, que alguns historiadores identificariam como um estudo de longa duração.7

        A forma em que nasce o racismo no final do século XVIII, a sua servidão nos estudos científicos sobre o desconhecido trazido ao ocidente pelas navegações, sua utilidade legitimadora das descobertas científicas da pureza de uma raça superior e sua reformulação, já no século XX, de um biologismo para uma ideologia sociocultural que sustenta os sistemas de dominação hierarquizados. Alguns traços do racismo moderno do século XIX cederam as rupturas da evolução do pensamento cientifico, porém outros ainda persistem no imaginário coletivo de diversas sociedades e de formas diferenciadas, como é o caso das diferenças de racismo entre os Estados Unidos, a África do Sul e o Brasil, por exemplo. Por tudo isso, é necessário entender um pouco mais sobre a construção dessa ideologia.

        O conceito de racismo é bem mais amplo do que podemos imaginar. Ao entendê-lo como uma ideologia de longa-duração já se pode perceber o quão amplo e abstrato ele deve ser. No entanto não estamos nem perto de desvendar suas nuanças. Existem várias leituras sobre o conceito e diversas utilizações. Desde a sua criação no séc. XIX, quando servia para legitimar a superiorização de uma raça em detrimento de outra, baseada na crença da existência de raças no sentido biológico, até os dias de hoje, que utiliza o racismo de forma sutil e amena, já dentro de uma realidade, em que se sabe não mais existir “raça” em sentido biológico, mas suas heranças estão vivas e latentes no imaginário coletivo e ainda assim, de forma política, ideológica, social e cultural, a ideologia racista ainda se sustenta e ainda serve como categoria de dominação do “outro” através de diversas ações e atitudes.

        O conceito de raça foi transportado das classificações dentro da biologia e da zoologia. No século XVII esse conceito foi empregado para analisar a diversidade humana e classificá-la. A partir desse momento os seres humanos foram divididos em raças: branca, preta e amarela. A princípio essas classificações vinham no intuito de conhecer um pouco mais a respeito da diversidade humana. Até esse instante não havia problemas. No entanto, essa classificação desemboca em uma hierarquização das raças que vai dá início ao racialismo8 como bem nos demonstra Kabengele Munanga:

                        

Infelizmente, desde o início, eles se deram o direito de hierarquizar, isto é, de estabelecer uma escala de valores entre as chamadas raças. E o fizeram erigindo uma relação intrínseca entre o biológico (cor da pele, traços morfológicos) e as qualidades psicológicas, morais, intelectuais e culturais. Assim, os individuos da raça ‘branca’ foram decretados coletivamente superiores aos da raça ‘negra’ ou ‘amarela’ em função de suas características físicas hereditárias, tais como a cor clara da pele, o formato do crânio (dolicocefalia), a forma dos lábios, do nariz, do queixo etc (Munanga, 2004, p.21).


        Visto isso podemos perceber que o racismo nasce da crença em uma “natural” hierarquia das raças. Apesar de soar paradoxal, essa “naturalidade” foi sendo construída desde as primeiras colonizações árabes e suas crenças religiosas até a idéia trazida pelos naturalistas dos séculos XVII-XIX.

        Outra percepção que nos leva a crer na “naturalização” da superioridade das raças vem das interpretações cristãs da Bíblia desde a Idade Média. Nesse caso podemos ampliar o racismo não só para uma análise da situação da população negra, mas também a situação dos judeus, que por causa da idéia de uma pureza de sangue, sofreram e ainda sofrem de uma discriminação e, em alguns casos, de perda da identidade judaica. A religião católica trouxe consigo ideais que sustentavam essa pureza de sangue e fez com que muitos judeus se convertessem ao cristianismo para uma possível aceitação social, tornando-se cristãos-novos. “Para sobreviver às perseguições empreendidas pelo Santo ofício, esse grupo tinha que ocultar suas raízes judaicas: ser judeu transformou-se em um “estado de espírito” (Tucci, 2005, p. 56). A idéia de pureza de sangue, que começa na Idade Média e estende-se até o século XIX, legitima os discursos dos cientistas daquela época que trabalhavam em torno do conceito da naturalização com relação a inferioridade/superioridade entre as raças.

        Como podemos perceber, o conceito da pureza de sangue chega até o séc. XIX e será usado para corroborar com a idéia de que os negros, quando misturado com a raça branca, construíram uma nova raça, a mestiça ou mulata. O fruto dessa miscigenação era considerado por alguns cientistas como uma aberração, portanto seres impuros, ou “infectos”. Conforme Munanga: “Em benefício do branco, o negro é alienado tanto no produto e forma de seu trabalho, como na sua pessoa. Para isto o sistema econômico que produziu o escravo, produziu também a maneira de produzir escravos biologicamente e socialmente”.

        A apresentação desse breve histórico traz uma percepção de que a problemática em torno da ideologia racista é de longa duração, e nos oferece também alguns diretrizes para entender um pouco mais sobre o racismo sociocultural que começa a despertar no final do séc. XIX — início do séc. XX — logo após as descobertas de que a verdade cientifica sobre “raça” não procedia.

        No entanto, mesmo sabendo que “raça”, em seu sentido biológico, não existe mais, a noção de “raça” ainda persiste de forma cultural e pauta o cotidiano das relações sociais e raciais. De acordo com Munanga:

                        

Trata-se aqui de um racismo por analogia ou metaforização, resultante da biologização de um conjunto de indivíduos pertencentes a uma mesma categoria social. É como se essa categoria social racializada (biologizada) fosse portadora de um estigma corporal. Temos, nesse caso, o uso popular do conceito de racismo, qualificando de racismo qualquer atitude ou comportamento de rejeição e de injustiça social (Munanga, 2004, p. 26).


        Deste modo, percebe-se a suma importância de entender que mesmo sem existir raça em seu sentido biológico, suas conseqüências e a formação de “raça” construída por motivos políticos e ideológica ainda ronda nosso imaginário coletivo e é um dos entraves à inclusão social. A partir dessa premissa, se percebe, em meados do séc. XX, novas formas racistas de comportamento. A ideologia racista agora é entendida de forma sociocultural e se instala como herança dos tempos do conceito de “raça” biológica. Dá-se origem as lutas dos movimentos sociais que irão perceber formas de discriminação e racismos não só contra as pessoas de pele negra, mas também contra mulheres, homossexuais, pobres e todas as formas de minoria. Esse racismo social se sustenta pela noção de etnia9 , definida como um grupo cultural, portanto mais difícil de ser combatido. O racismo do século XX se constrói a partir dos alicerces do conceito de “raça”, porém se desenvolve em torno da história e das formas de reconhecimento de um “outro” na sociedade. Dá-se início ao discurso da aceitação das diferenças. Um discurso ambíguo que, tendo em vista está sendo utilizado tanto pelos racistas como pelo anti-racistas. A bandeira levantada pelos militantes dos movimentos sociais da tolerância às diferenças se encontra e se confronta.

        Não obstante, mesmo tendo a noção de que hoje as formas discriminatórias estende-se a diversas formas de minorias dentro da sociedade, se faz mister perceber que, por ter uma trajetória de longa duração, como já podemos perceber, a discriminação racial ainda é um dos maiores problemas da desigualdade em que vivemos.

        Diante dessa realidade, a partir da década de 70 os movimentos de resistência à globalização cultural dão seus primeiros sinais de vida. Ao mesmo tempo em que o conceito e as análises desse racismo social e de suas conseqüências vão sendo parte das pesquisas e avaliações sociais, o estudo sobre identidade será retomado, mas agora de forma diferente da existente na década de 30, que tinha como ideal a construção uma identidade nacional, universalista. Hoje o tema está pautado na existência de diversas identidades dentro da nação, uma delas é a identidade negra. Este discurso irá tomar corpo, tanto dentro das militâncias do movimento negro como dentro das Universidades.

        Iremos pautar nossa reflexão na realidade brasileira. Quando falar do racismo social, há que se construir uma reflexão sobre as formas em que esse foi se alargando nas diferentes sociedades. O racismo nos Estados Unidos e na África do Sul se desenvolve a partir da absolutização das diferenças. A dinâmica desse tipo de racismo levou a políticas segregadoras ou de apartheid, construindo assim sociedades pluriculturais hierarquizadas e antidemocráticas. Já o modelo de racismo construído no Brasil era um modelo dito como universalista, ou como nos demonstra Muniz Sodré pela classificação de Taguieff, “espiritual ou cultural-universalista”10 . O nosso racismo pautou-se na miscigenação, na mestiçagem. “Esse modelo supõe a negação absoluta da diferença, ou seja, uma avaliação negativa de qualquer diferença”. Para Munanga:

                        

Trata-se aqui de um racismo por analogia ou metaforização, resultante da biologização de um conjunto de indivíduos pertencentes a uma mesma categoria social. É como se essa categoria social racializada (biologizada) fosse portadora de um estigma corporal. Temos, nesse caso, o uso popular do conceito de racismo, qualificando de racismo qualquer atitude ou comportamento de rejeição e de injustiça social (Munanga, 2004, p. 26).


        Para analisar a construção dessa nova identidade, é necessário fazer a contextualização do que foi a busca de unidade advinda de um modelo sincrético e assimilacionista até os dias atuais. Esse sentimento de identidade ou cultura nacional foi sendo construído pela elite brasileira e legitimada pelas universidades através dos seus cientistas sociais, e chega ao seu ponto de ascensão como ideologia de uma nação mestiça na década de 30 - com o governo Vargas – vivenciando seus tempos de glória entre as décadas de 30 a 50, legitimado por cientistas sociais como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, entre outros, e declamado em poesias, como é o caso de História Pátria do poeta Ascenso Ferreira11 :

                        

Plantando mandioca, plantando feijão,
colhendo café, borracha e cacau,
comendo pamonha, canjica e mingau,
rezando de tarde nossa ave Maria,
        Negramente.....
        Caboclamente.....
        Portuguesamente...
        A gente vivia.
De festas no ano só quatro é que havia
Entrudo e Natal, Quaresma e sanjoão!
Mas tudo emendava num só carrilhão!
E a gente vadiava, dançava e comia
        Negramente.....
        Caboclamente.....
        Portuguesamente...
        Todo santo dia!


        No entanto, apesar dessas ricas e belas palavras, se introduzia uma narrativa da busca de um brasileiro assimilacionista das heranças eurocêntricas. Nesse discurso não importava o quão diferentes os indivíduos poderiam ser em termos de classe, gênero ou raça, o que importava naquela época era que todos pertenciam a grande nação. Segundo Canclini,

                        

As oligarquias liberais do final do século XIX e início do XX teriam feitos de conta que constituíam Estados, mas apenas organizaram algumas áreas da sociedade para promover em desenvolvimento subordinado e inconsistente; fizeram de conta que formavam culturas nacionais e mal construíram culturas de elite, deixando de fora enormes populações indígenas e camponesas que evidenciam tal exclusão em mil revoltas e na migração que ‘transtorna’ a cidade (Canclini, 1999, p. 150) .


        Não obstante, Ao tentar igualar todos os cidadãos com vias ao fortalecimento do Estado Nacional e de suas políticas, olvidaram de questionar suas peculiaridades, suas culturas, minimizando e enfraquecendo políticas e ações do Governo à médio e longo prazo. Teríamos exemplos suficientes para demonstrar que essa unificação não existiu, que esse cidadão nacional e brasileiro era, por motivos racistas, um cidadão branco e espelhado na cultura de origem européia. Portanto há que se questionar essa unidade nacional tanto em sua política de identidade nacional quanto em seus alicerces ideológico, como no caso da “democracia racial”.

        Dessa forma, poderíamos pensar que uma cultura nacional que persiste em termos de competição do Estado Nação a uma estrutura econômica global na sociedade desencadeia tipos de movimentos de resistência paralelos a ela, pois uma nação que visa uma cultura universalista não apreciaria questões locais e culturais, invisibilizando grande parte das outras heranças formadoras dessa nação.

        Pode-se perceber, diante desse breve quadro histórico, que a imagem do negro, mesmo tendo sido construída como mistura, ou miscigenada com outras raças — branca e indígena — era percebido como inferior, dotado de pouca inteligência, quase um animal, que é como alguns cientistas o viam. A exemplo dessa imagem tem-se o trabalho do médico e pesquisador Nina Rodrigues que surge dentro dessa ideologia - trazida da Europa - e acrescenta sua visão aos moldes brasileiros que se estava construindo. Por esses motivos a obra de Nina Rodrigues vivia entre tensões. Em sua obra O Problema da raça negra na América Portuguesa demonstra seu discurso dicotômico:

                        

“A escravidão se extinguiu, o negro é um cidadão como qualquer outro, e entregue a si poderia suplantar ou dominar o branco” (p.4), mas “a arca negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontáveis serviços à nossa civilização(...) há de construir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo (p.7) (apud Augras, 2003, p. 103).


        Diante disso vê-se a dificuldade de se pensar o negro pós-abolição. Esse negro, livre, era uma espécie de ser não identificado ainda nessa sociedade em ruptura de sistemas. Um cidadão livre que não condizia com os moldes eurocêntricos. Para Sodré a imagem do negro era tida como “autodepreciativo a mesma normatividade da ética universalista que produz o diferente do paradigma branco-europeu como um ‘inumano universal’ ou como uma outra espécie biológica não plenamente identificável como humana” (Sodré, 1999). Já autores contemporâneos à obra de Nina Rodrigues perceberam um negro mais misturado ao brasileiro, como vimos na obra de Gilberto Freyre. Mesmo assim, a imagem daquele não ia mais que um bastardo ou mestiço.

        Dentro desse quadro percebemos que a unificação pretendida na idéia de nacionalidade trata-se de uma estrutura de poder cultural e que as culturas/identidades nacionais são formadas por divisões e diferenças internas. E, ao perceber essa deficiência, iremos repensar como esses indivíduos antes esquecidos no bojo dessa unificação, vão reconstruir sua identidade tanto individual como coletiva.

        Nesse percurso de conscientização e construção de identidades, percebe-se a dificuldade que o movimento negro encontra em mobilizar os indivíduos da população negra a pensar uma identidade negra. Desta discussão vemos nascer divergências ideológicas dentro do próprio movimento. Enquanto algumas correntes pensam em construir uma identidade “mestiça” capaz de reunir todos os brasileiros, outras lutam pela construção de uma consciência da afrodescendência12 através de várias identidades negras, constituindo uma sociedade mais plural e de identidades múltiplas.

        Vemos aqui duas possíveis propostas para uma transformação social que merece atenção. Com relação à construção de uma identidade “mestiça”, tem-se aqui um possível retrocesso no discurso da militância e, quiçá, “uma nova sutileza ideológica para recuperar a idéia de uma unidade nacional não alcançada pelo fracassado branqueamento físico”, como nos lembra Munanga (Munanga, 2004, p.16).

        Faz-se necessário perceber que os brasileiros viveram durante décadas a crença de uma “democracia racial”. E, como tal, não era preciso se definir em cores, tendo em vista sermos todos brasileiros. Diante disso, encontramos a dificuldade de se perceber uma identidade através da posição racial. “Como formar uma identidade em torno da cor e da negritude não assumida pela maioria cujo futuro foi projetado no sonho do branqueamento?” (Munaga, 2004, p. 17). Estamos diante de duas grandes dificuldades, que permeiam hoje os estudos acadêmicos: pensar identidade como uma construção política; e construir a conscientização de que existem diversas e diferentes identidades dentro do país.

        O trabalho da socióloga Elisa Larkin nos traz uma percepção sobre a construção de identidades, que vão desde uma análise de um self — a partir da obra de Charles Taylor13 — até a percepção de uma identidade de grupo ou coletiva “o sujeito se constrói a partir de marcas diferenciadas provindas do outro”. Portanto o indivíduo seria um ser incompleto, não tendo “uma identidade contínua, mas o fluxo de identificações, uma dinâmica em que o indivíduo interioriza atitudes, comportamentos e costumes apreendidos no meio social”, sendo completado pelas ligações inter-relacionais que o faz dentro da comunidade.

        O indivíduo vai se construindo a partir de seus referenciais culturais e suas representações, contudo, só formará uma identidade coletiva ao compartilhar suas construções com o outro. Para Larkin, “A identidade coletiva pode ser entendida como o conjunto de referências que regem os inter-relacionamentos dos integrantes de uma sociedade, ou como o complexo de referenciais que diferenciam o grupo e seus componentes dos “outros” grupos e seus membros, que compõe o restante da sociedade” (Larkin, 2003, p. 31).

        As idéias de identidade individual e identidade coletiva ainda se encontram entrelaçadas à autores e conceitos modernistas, deixando uma lacuna que será preenchida mais adiante com uma nova reflexão a respeito da identidade, quando essa toma uma dimensão de ação social. Nos tempos atuais, e diante do processo de globalização, fica evidente que estudos sobre identidade, reconhecimento e pertencimento se fazem necessários para dar um maior entendimento dessas transformações.

        O trabalho do sociólogo Manuel Castells, uma trilogia intitulada A era da informação, esclarece alguns pontos ainda um pouco obscuros diante dessa nova forma de pensar a identidade frente à globalização. No segundo volume da trilogia, O poder da identidade, Castels chama a atenção para três formas possíveis de associação identitárias, a saber: “identidade legitimadora”, “identidade de resistência” e “identidade de projeto”.14

        A incessante busca de se encontrar uma identidade negra, que volta a discussão pelos militantes do movimento negro da década de 70 — tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil — se encaixa na teoria conceitual acerca de uma identidade de resistência, pautada por Castells: “identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos...”(Castells, 1999, p. 24).

        Essa tomada de consciência, em meados da década de 70, foi fundamental para impulsionar os militantes em sua luta de resistência a um modelo de identidade única e eurocêntrica. No entanto, percebemos que hoje a proposta de uma identidade negra única também recairia em um universalismo dentro da própria resistência. Os negros no Brasil não construíram uma única identidade, haja vista as diversas demonstrações culturais encontradas em cada Estado que tiveram influência de negros de diferentes áreas da África, e de diferentes épocas. Ou seja, existe diversos “eu” formados dentro desses grupos. “Por esta razão, para garantir a sua efetividade, segundo Castells, as “identidades de resistência” precisam se transformar, também, em “identidades de projeto”15 .

        Vemos então que a solução de uma construção de uma identidade racial não se deve ficar presa a uma única percepção de cultura negra brasileira. Quando pensamos em “identidade de projeto”, pensamos em uma diversidade na unidade. Não podemos cair na crença biologista e racista de que o negro constrói uma única cultura. Para Munanga:

                        

Assim como a identidade cultural se constrói com base na tomada de consciência das diferenças provenientes das particularidades históricas, culturais, religiosas, sociais, regionais etc., se delineiam no Brasil diversos processos de identidade cultural, revelando um certo pluralismo tanto de negros, quanto de brancos e entre amarelos, todos tomados como sujeitos históricos e culturais e não como sujeitos biológicos ou raciais (Munanga, 2004, p. 32).


        Percebemos em todo o correr do trabalho que as mudanças de conceitos influencia diretamente na hegemonia das ideologias. A necessidade de ter o parecer científico a respeito de determinada situação social nos envolve há séculos e, no caso do racismo, sabemos que várias atrocidades foram cometidas - tanto com grupos raciais como com grupos étnicos - por causa da legitimação do poder/saber dos cientistas.

        A psicóloga Monique Augras ilustra muito bem essa realidade em seu artigo intitulado O Terreiro na academia, alegando que “Todo grupo social necessita legitimar os seus valores e representações, mediante a elaboração de instituições que lhe assegurem a excelência e a permanência ao longo do tempo”.

        Diante dessa nova realidade como podemos perceber a posição das Universidades nesses discursos?

        A problemática da ideologia racista, como se pode observar nessa sucinta discussão, se trata de uma construção que, antes criada pelas ciências da saúde, hoje permeia nosso imaginário e dificulta uma possível convivência harmônica entre os diferentes, dada sua permanência — de longa duração — nessa consciência coletiva. No caso do Brasil, como nos lembra Munanga, “entre as características do racismo brasileiro, a ambigüidade é uma delas” (2004). Esse racismo foi por muitas décadas estudado, pesquisado e relatado em teses e livros por grandes cientistas sociais que construíram os alicerces dessa ambigüidade.

        A década de 70 traz os movimentos negros, que já atuavam desde o início do século, para a participação dessa construção acadêmica para dar mais legitimidade a seus discursos e a própria demanda social. Acreditamos ter sido essa uma grande mudança nas atividades e contribuições do movimento negro e das Universidades para a sociedade.

        Percebemos também que essa dinâmica de movimento e universidade trouxe e tem trazido muito acréscimo na discussão sobre a inclusão do negro na sociedade, apesar de termos em mente que essa “união” não pode ser vista de forma harmônica. Com todas as dificuldades históricas, essa junção de interesses traz consigo a formação de núcleos de pesquisas e estudos dentro das universidades que hoje atuam como uma voz coletiva dentro de grandes instituições acadêmicas e que, para além de construir conceitos, proclama aos quatro ventos a necessidade de se pensar o racismo, de entendê-lo e tentar reconstruir essa história que, como se viu, é de longa duração.


Referências bibliográficas


AUGRAS, Monique. O Terreiro na academia. In: FONSECA, Denise Pini Rosalem (org). Resistência e Inclusão. História, Cultura, educação e cidadania afrodescendentes. Vol. I, p. 101-115.

BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. Tradução J. Guinsburg e Tereza Cristina Silveira da Mota. São Paulo: Preceptiva, 1969.

CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos. Rio de janeiro: Editora UFRG, 1999.

CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. O poder da identidade. Vol II. Prefácio de Ruth Correa Leite Cardoso. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CARNEIRO, Maria Luíza Tucci. Preconceito Racial em Portugual e Brasil Colônia: Os Cristãos-novos e o mito da pureza de sangue. Estudos, 197. São Paulo: Perspectiva, 2005.

CHAMPION, Craige. In: ISAAC, Benjamim. Resenha do livro The Invention of Racism in Classical Antiquiti. Princeton: University Press, 2004.

MUNANGA. Kabengele. Uma abordagem Conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: Cadernos PENESB. Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira. Niterói, Rio de Janeiro. Nº 5. p. 15-23, 2004.

____________________. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Identidade nacional versus Identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus, 2003.

SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Teresópolis: Vozes, 1999.




1 Mestranda em serviço social pela PUC-Rio.
2 Lição de Coisas. Lisboa: Ulmeiro, 1980.
3 Craige B. Champion é professor assistente de História Clássica e Antiga na Maxwell School of Citizenship. and Public Affairs. Sua área de interesse acadêmico inclui a influência da teoria política clássica na tradição política ocidental, teorias e práticas democráticas da antiga Grécia e a inter-relação entre cidadania e império da Grécia e Roma antiga.
4 O “proto-racismo” é a concepção de alguns autores, a exemplo de Issac Benjamin, acerca da existência de conteúdos preconceituosos e discriminatórios em civilizações antigas, como por exemplo nos impérios grego e romano, que trariam um viés ligado a “raça” e ao “racismo” mesmo antes das existências das próprias palavras que foram construídas e assimiladas como conceitos a partir do séc XIX por autores como Cuvier, Buffon, Kant Thomas Jefferson entre outros.
5 Ver mais detalhes sobre esses escritos nas obras: BENJAMIN, Isaac. The Invention of Racism in Classical Antiquiti. Princeton University Press, 2002 e LEWIS, Bernard. Race et Couler em pays d’Islam. Traduction d‘André Iteanu et Françoise Briand revue par l’auter. Paris: Payot, 1982.
6 Por haver diversas leituras e interpretações sobre o racismo, em alguns momentos utilizaremos a palavra racismo ora como conceito, ora como ideologia.
7 Para saber mais sobre o conceito de longa duração-estudado pelos historiadores dos annales ler: BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1969.
8 O racialismo foi uma teoria que conquistou muita gente no início do século XX. Mais doutrina do que ciência, o racialismo trazia um discurso que legitimava o sistema de dominação racial.
9 A palavra “raça” ainda é utilizada por alguns pesquisadores sociais que acreditam que, mesmo não mais existindo raças biológicas essa ainda persiste na estrutura social e cultural. Em contrapartida outros pesquisadores preferem o conceito de etnia, que traz em si uma união sociocultural dos indivíduos e não mais uma união biológica. Todavia, como sabemos que “raça” e “racismo” não são mais vistos a partir dos preceitos biológicos, e sim pelos preceitos políticos, ideológicos e sociais, o uso de “raça” ou etnia não terá muita diferença.
10 Taguieff, PierreAndré. La force du préju´gé – essai sur lê racisme et sés doubles. In Sodré, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
11 Ascenso Ferreira, poeta pernambucano, participou na década de 40 do início do movimento modernista e tinha em suas palavras o dom de mostrar a alma do nordestino e do brasileiro. Construía-se a partir dessas ilustres palavras o imaginário de uma nação, uma unidade e um povo brasileiro.
12 Alguns militantes usam o termo afrodescendente ou identidade afrodescendente para sugerir a possível criação de um consenso e uma unidade através da idéia de ancestralidade e ascendência africana. Em toda a trajetória do movimento negro já foram usados termos como “negros” e afro-brasileiros, entre outros. Atualmente grande parte dos militantes e estudiosos do tema se alinham com a idéia de uma afrodescendência.
13 Para saber mais ler: TAYLOR, Charles. As Fontes do Self. A construção da identidade moderna. Tradução: Adail Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Loyola, 1997.
14 Não nos compete nesse trabalho elaborar mais a respeito das três formas de identidade desenvolvidas pelo sociólogo tendo em vista o interesse aqui se restringir a “identidade de projeto”. Para uma maior leitura a respeito das diferentes formas de identidade, ver em CASTELS, M. O poder da identidade, pps. 24-25.
15 O conceito de “identidade de projeto” elaborado por Castells traz a idéia de que “quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social.” (Castells, 1999, p. 24).