Ana Helena Passos1
Resumo:
Visto isso podemos perceber que o racismo nasce da crença em uma “natural” hierarquia das raças. Apesar de soar paradoxal, essa “naturalidade” foi sendo construída desde as primeiras colonizações árabes e suas crenças religiosas até a idéia trazida pelos naturalistas dos séculos XVII-XIX. Outra percepção que nos leva a crer na “naturalização” da superioridade das raças vem das interpretações cristãs da Bíblia desde a Idade Média. Nesse caso podemos ampliar o racismo não só para uma análise da situação da população negra, mas também a situação dos judeus, que por causa da idéia de uma pureza de sangue, sofreram e ainda sofrem de uma discriminação e, em alguns casos, de perda da identidade judaica. A religião católica trouxe consigo ideais que sustentavam essa pureza de sangue e fez com que muitos judeus se convertessem ao cristianismo para uma possível aceitação social, tornando-se cristãos-novos. “Para sobreviver às perseguições empreendidas pelo Santo ofício, esse grupo tinha que ocultar suas raízes judaicas: ser judeu transformou-se em um “estado de espírito” (Tucci, 2005, p. 56). A idéia de pureza de sangue, que começa na Idade Média e estende-se até o século XIX, legitima os discursos dos cientistas daquela época que trabalhavam em torno do conceito da naturalização com relação a inferioridade/superioridade entre as raças. Como podemos perceber, o conceito da pureza de sangue chega até o séc. XIX e será usado para corroborar com a idéia de que os negros, quando misturado com a raça branca, construíram uma nova raça, a mestiça ou mulata. O fruto dessa miscigenação era considerado por alguns cientistas como uma aberração, portanto seres impuros, ou “infectos”. Conforme Munanga: “Em benefício do branco, o negro é alienado tanto no produto e forma de seu trabalho, como na sua pessoa. Para isto o sistema econômico que produziu o escravo, produziu também a maneira de produzir escravos biologicamente e socialmente”. A apresentação desse breve histórico traz uma percepção de que a problemática em torno da ideologia racista é de longa duração, e nos oferece também alguns diretrizes para entender um pouco mais sobre o racismo sociocultural que começa a despertar no final do séc. XIX — início do séc. XX — logo após as descobertas de que a verdade cientifica sobre “raça” não procedia. No entanto, mesmo sabendo que “raça”, em seu sentido biológico, não existe mais, a noção de “raça” ainda persiste de forma cultural e pauta o cotidiano das relações sociais e raciais. De acordo com Munanga:
Deste modo, percebe-se a suma importância de entender que mesmo sem existir raça em seu sentido biológico, suas conseqüências e a formação de “raça” construída por motivos políticos e ideológica ainda ronda nosso imaginário coletivo e é um dos entraves à inclusão social. A partir dessa premissa, se percebe, em meados do séc. XX, novas formas racistas de comportamento. A ideologia racista agora é entendida de forma sociocultural e se instala como herança dos tempos do conceito de “raça” biológica. Dá-se origem as lutas dos movimentos sociais que irão perceber formas de discriminação e racismos não só contra as pessoas de pele negra, mas também contra mulheres, homossexuais, pobres e todas as formas de minoria. Esse racismo social se sustenta pela noção de etnia9 , definida como um grupo cultural, portanto mais difícil de ser combatido. O racismo do século XX se constrói a partir dos alicerces do conceito de “raça”, porém se desenvolve em torno da história e das formas de reconhecimento de um “outro” na sociedade. Dá-se início ao discurso da aceitação das diferenças. Um discurso ambíguo que, tendo em vista está sendo utilizado tanto pelos racistas como pelo anti-racistas. A bandeira levantada pelos militantes dos movimentos sociais da tolerância às diferenças se encontra e se confronta. Não obstante, mesmo tendo a noção de que hoje as formas discriminatórias estende-se a diversas formas de minorias dentro da sociedade, se faz mister perceber que, por ter uma trajetória de longa duração, como já podemos perceber, a discriminação racial ainda é um dos maiores problemas da desigualdade em que vivemos. Diante dessa realidade, a partir da década de 70 os movimentos de resistência à globalização cultural dão seus primeiros sinais de vida. Ao mesmo tempo em que o conceito e as análises desse racismo social e de suas conseqüências vão sendo parte das pesquisas e avaliações sociais, o estudo sobre identidade será retomado, mas agora de forma diferente da existente na década de 30, que tinha como ideal a construção uma identidade nacional, universalista. Hoje o tema está pautado na existência de diversas identidades dentro da nação, uma delas é a identidade negra. Este discurso irá tomar corpo, tanto dentro das militâncias do movimento negro como dentro das Universidades. Iremos pautar nossa reflexão na realidade brasileira. Quando falar do racismo social, há que se construir uma reflexão sobre as formas em que esse foi se alargando nas diferentes sociedades. O racismo nos Estados Unidos e na África do Sul se desenvolve a partir da absolutização das diferenças. A dinâmica desse tipo de racismo levou a políticas segregadoras ou de apartheid, construindo assim sociedades pluriculturais hierarquizadas e antidemocráticas. Já o modelo de racismo construído no Brasil era um modelo dito como universalista, ou como nos demonstra Muniz Sodré pela classificação de Taguieff, “espiritual ou cultural-universalista”10 . O nosso racismo pautou-se na miscigenação, na mestiçagem. “Esse modelo supõe a negação absoluta da diferença, ou seja, uma avaliação negativa de qualquer diferença”. Para Munanga:
Para analisar a construção dessa nova identidade, é necessário fazer a contextualização do que foi a busca de unidade advinda de um modelo sincrético e assimilacionista até os dias atuais. Esse sentimento de identidade ou cultura nacional foi sendo construído pela elite brasileira e legitimada pelas universidades através dos seus cientistas sociais, e chega ao seu ponto de ascensão como ideologia de uma nação mestiça na década de 30 - com o governo Vargas – vivenciando seus tempos de glória entre as décadas de 30 a 50, legitimado por cientistas sociais como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, entre outros, e declamado em poesias, como é o caso de História Pátria do poeta Ascenso Ferreira11 :
No entanto, apesar dessas ricas e belas palavras, se introduzia uma narrativa da busca de um brasileiro assimilacionista das heranças eurocêntricas. Nesse discurso não importava o quão diferentes os indivíduos poderiam ser em termos de classe, gênero ou raça, o que importava naquela época era que todos pertenciam a grande nação. Segundo Canclini,
Não obstante, Ao tentar igualar todos os cidadãos com vias ao fortalecimento do Estado Nacional e de suas políticas, olvidaram de questionar suas peculiaridades, suas culturas, minimizando e enfraquecendo políticas e ações do Governo à médio e longo prazo. Teríamos exemplos suficientes para demonstrar que essa unificação não existiu, que esse cidadão nacional e brasileiro era, por motivos racistas, um cidadão branco e espelhado na cultura de origem européia. Portanto há que se questionar essa unidade nacional tanto em sua política de identidade nacional quanto em seus alicerces ideológico, como no caso da “democracia racial”. Dessa forma, poderíamos pensar que uma cultura nacional que persiste em termos de competição do Estado Nação a uma estrutura econômica global na sociedade desencadeia tipos de movimentos de resistência paralelos a ela, pois uma nação que visa uma cultura universalista não apreciaria questões locais e culturais, invisibilizando grande parte das outras heranças formadoras dessa nação. Pode-se perceber, diante desse breve quadro histórico, que a imagem do negro, mesmo tendo sido construída como mistura, ou miscigenada com outras raças — branca e indígena — era percebido como inferior, dotado de pouca inteligência, quase um animal, que é como alguns cientistas o viam. A exemplo dessa imagem tem-se o trabalho do médico e pesquisador Nina Rodrigues que surge dentro dessa ideologia - trazida da Europa - e acrescenta sua visão aos moldes brasileiros que se estava construindo. Por esses motivos a obra de Nina Rodrigues vivia entre tensões. Em sua obra O Problema da raça negra na América Portuguesa demonstra seu discurso dicotômico:
Diante disso vê-se a dificuldade de se pensar o negro pós-abolição. Esse negro, livre, era uma espécie de ser não identificado ainda nessa sociedade em ruptura de sistemas. Um cidadão livre que não condizia com os moldes eurocêntricos. Para Sodré a imagem do negro era tida como “autodepreciativo a mesma normatividade da ética universalista que produz o diferente do paradigma branco-europeu como um ‘inumano universal’ ou como uma outra espécie biológica não plenamente identificável como humana” (Sodré, 1999). Já autores contemporâneos à obra de Nina Rodrigues perceberam um negro mais misturado ao brasileiro, como vimos na obra de Gilberto Freyre. Mesmo assim, a imagem daquele não ia mais que um bastardo ou mestiço. Dentro desse quadro percebemos que a unificação pretendida na idéia de nacionalidade trata-se de uma estrutura de poder cultural e que as culturas/identidades nacionais são formadas por divisões e diferenças internas. E, ao perceber essa deficiência, iremos repensar como esses indivíduos antes esquecidos no bojo dessa unificação, vão reconstruir sua identidade tanto individual como coletiva. Nesse percurso de conscientização e construção de identidades, percebe-se a dificuldade que o movimento negro encontra em mobilizar os indivíduos da população negra a pensar uma identidade negra. Desta discussão vemos nascer divergências ideológicas dentro do próprio movimento. Enquanto algumas correntes pensam em construir uma identidade “mestiça” capaz de reunir todos os brasileiros, outras lutam pela construção de uma consciência da afrodescendência12 através de várias identidades negras, constituindo uma sociedade mais plural e de identidades múltiplas. Vemos aqui duas possíveis propostas para uma transformação social que merece atenção. Com relação à construção de uma identidade “mestiça”, tem-se aqui um possível retrocesso no discurso da militância e, quiçá, “uma nova sutileza ideológica para recuperar a idéia de uma unidade nacional não alcançada pelo fracassado branqueamento físico”, como nos lembra Munanga (Munanga, 2004, p.16). Faz-se necessário perceber que os brasileiros viveram durante décadas a crença de uma “democracia racial”. E, como tal, não era preciso se definir em cores, tendo em vista sermos todos brasileiros. Diante disso, encontramos a dificuldade de se perceber uma identidade através da posição racial. “Como formar uma identidade em torno da cor e da negritude não assumida pela maioria cujo futuro foi projetado no sonho do branqueamento?” (Munaga, 2004, p. 17). Estamos diante de duas grandes dificuldades, que permeiam hoje os estudos acadêmicos: pensar identidade como uma construção política; e construir a conscientização de que existem diversas e diferentes identidades dentro do país. O trabalho da socióloga Elisa Larkin nos traz uma percepção sobre a construção de identidades, que vão desde uma análise de um self — a partir da obra de Charles Taylor13 — até a percepção de uma identidade de grupo ou coletiva “o sujeito se constrói a partir de marcas diferenciadas provindas do outro”. Portanto o indivíduo seria um ser incompleto, não tendo “uma identidade contínua, mas o fluxo de identificações, uma dinâmica em que o indivíduo interioriza atitudes, comportamentos e costumes apreendidos no meio social”, sendo completado pelas ligações inter-relacionais que o faz dentro da comunidade. O indivíduo vai se construindo a partir de seus referenciais culturais e suas representações, contudo, só formará uma identidade coletiva ao compartilhar suas construções com o outro. Para Larkin, “A identidade coletiva pode ser entendida como o conjunto de referências que regem os inter-relacionamentos dos integrantes de uma sociedade, ou como o complexo de referenciais que diferenciam o grupo e seus componentes dos “outros” grupos e seus membros, que compõe o restante da sociedade” (Larkin, 2003, p. 31). As idéias de identidade individual e identidade coletiva ainda se encontram entrelaçadas à autores e conceitos modernistas, deixando uma lacuna que será preenchida mais adiante com uma nova reflexão a respeito da identidade, quando essa toma uma dimensão de ação social. Nos tempos atuais, e diante do processo de globalização, fica evidente que estudos sobre identidade, reconhecimento e pertencimento se fazem necessários para dar um maior entendimento dessas transformações. O trabalho do sociólogo Manuel Castells, uma trilogia intitulada A era da informação, esclarece alguns pontos ainda um pouco obscuros diante dessa nova forma de pensar a identidade frente à globalização. No segundo volume da trilogia, O poder da identidade, Castels chama a atenção para três formas possíveis de associação identitárias, a saber: “identidade legitimadora”, “identidade de resistência” e “identidade de projeto”.14 A incessante busca de se encontrar uma identidade negra, que volta a discussão pelos militantes do movimento negro da década de 70 — tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil — se encaixa na teoria conceitual acerca de uma identidade de resistência, pautada por Castells: “identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos...”(Castells, 1999, p. 24). Essa tomada de consciência, em meados da década de 70, foi fundamental para impulsionar os militantes em sua luta de resistência a um modelo de identidade única e eurocêntrica. No entanto, percebemos que hoje a proposta de uma identidade negra única também recairia em um universalismo dentro da própria resistência. Os negros no Brasil não construíram uma única identidade, haja vista as diversas demonstrações culturais encontradas em cada Estado que tiveram influência de negros de diferentes áreas da África, e de diferentes épocas. Ou seja, existe diversos “eu” formados dentro desses grupos. “Por esta razão, para garantir a sua efetividade, segundo Castells, as “identidades de resistência” precisam se transformar, também, em “identidades de projeto”15 . Vemos então que a solução de uma construção de uma identidade racial não se deve ficar presa a uma única percepção de cultura negra brasileira. Quando pensamos em “identidade de projeto”, pensamos em uma diversidade na unidade. Não podemos cair na crença biologista e racista de que o negro constrói uma única cultura. Para Munanga:
Percebemos em todo o correr do trabalho que as mudanças de conceitos influencia diretamente na hegemonia das ideologias. A necessidade de ter o parecer científico a respeito de determinada situação social nos envolve há séculos e, no caso do racismo, sabemos que várias atrocidades foram cometidas - tanto com grupos raciais como com grupos étnicos - por causa da legitimação do poder/saber dos cientistas. A psicóloga Monique Augras ilustra muito bem essa realidade em seu artigo intitulado O Terreiro na academia, alegando que “Todo grupo social necessita legitimar os seus valores e representações, mediante a elaboração de instituições que lhe assegurem a excelência e a permanência ao longo do tempo”. Diante dessa nova realidade como podemos perceber a posição das Universidades nesses discursos? A problemática da ideologia racista, como se pode observar nessa sucinta discussão, se trata de uma construção que, antes criada pelas ciências da saúde, hoje permeia nosso imaginário e dificulta uma possível convivência harmônica entre os diferentes, dada sua permanência — de longa duração — nessa consciência coletiva. No caso do Brasil, como nos lembra Munanga, “entre as características do racismo brasileiro, a ambigüidade é uma delas” (2004). Esse racismo foi por muitas décadas estudado, pesquisado e relatado em teses e livros por grandes cientistas sociais que construíram os alicerces dessa ambigüidade. A década de 70 traz os movimentos negros, que já atuavam desde o início do século, para a participação dessa construção acadêmica para dar mais legitimidade a seus discursos e a própria demanda social. Acreditamos ter sido essa uma grande mudança nas atividades e contribuições do movimento negro e das Universidades para a sociedade. Percebemos também que essa dinâmica de movimento e universidade trouxe e tem trazido muito acréscimo na discussão sobre a inclusão do negro na sociedade, apesar de termos em mente que essa “união” não pode ser vista de forma harmônica. Com todas as dificuldades históricas, essa junção de interesses traz consigo a formação de núcleos de pesquisas e estudos dentro das universidades que hoje atuam como uma voz coletiva dentro de grandes instituições acadêmicas e que, para além de construir conceitos, proclama aos quatro ventos a necessidade de se pensar o racismo, de entendê-lo e tentar reconstruir essa história que, como se viu, é de longa duração. Referências bibliográficas AUGRAS, Monique. O Terreiro na academia. In: FONSECA, Denise Pini Rosalem (org). Resistência e Inclusão. História, Cultura, educação e cidadania afrodescendentes. Vol. I, p. 101-115. BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. Tradução J. Guinsburg e Tereza Cristina Silveira da Mota. São Paulo: Preceptiva, 1969. CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos. Rio de janeiro: Editora UFRG, 1999. CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. O poder da identidade. Vol II. Prefácio de Ruth Correa Leite Cardoso. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CARNEIRO, Maria Luíza Tucci. Preconceito Racial em Portugual e Brasil Colônia: Os Cristãos-novos e o mito da pureza de sangue. Estudos, 197. São Paulo: Perspectiva, 2005. CHAMPION, Craige. In: ISAAC, Benjamim. Resenha do livro The Invention of Racism in Classical Antiquiti. Princeton: University Press, 2004. MUNANGA. Kabengele. Uma abordagem Conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: Cadernos PENESB. Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira. Niterói, Rio de Janeiro. Nº 5. p. 15-23, 2004. ____________________. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Identidade nacional versus Identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus, 2003. SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Teresópolis: Vozes, 1999.
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